sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O grande culpado


Culpado! – determinou o juiz diante do tribunal em 1994, quando tinha apenas dezesseis anos. Fora preso por ser “entregador” de drogas, trabalhava para um grande traficante de uma das favelas do Rio de Janeiro. Morava com o pai, na Baixada Fluminense, a mãe havia morrido no parto. Vivia teoricamente bem, o pai era médico cirurgião, vivia a maior parte do tempo no hospital, sendo talvez esse o motivo pelo qual Davi entrara para o tráfico, era um garoto presunçoso, mas ao mesmo tempo carente.
Passou dois anos no reformatório, onde fora estuprado por um dos guardas. Isso tornou Davi reprimido. Ao ser libertado, o psicólogo do reformatório indicou ao pai que fosse levado ao psiquiatra duas vezes ao mês. “Como se fosse mudar algo”, pensava ele. Foram seis meses de terapia.
Foi em 1997 que ele entrou para a faculdade, estudou teologia. Após graduar-se passou a morar sozinho em uma pequena casa cedida pela paróquia, que trabalhava na periferia da Baixada.
- Bom dia, Sr. Barnard, que bom que chegou!
- Hã...pode me chamar de Eduardo, padre. - Eduardo era um homem que um dia fora muito rico, mas seu vício em bebidas o levou à ruínas, perdendo a mulher e o filho. Passando a morar numa pequena casa, na periferia, pagando aluguel, que de fato estava sempre atrasado, por ameaças do dono, decidiu pedir ajuda ao padre Davi.
- Tudo bem. Aqui estão as Bíblias de que lhe falei e os panfletos. – disse entregando-lhe uma caixa pesada, que fazia parecer que os frágeis braços do velho não aguentariam – Mas antes, – disse hesitante – sabes tu que faço isso, porque me pedistes, não é mesmo?
- Não se preocupe padre Davi, meus lábios estão selados.
- Muito bem – disse sorrindo e entregando-lhe a caixa pesada.


“JOVEM É ASSASSINADO EM BELFORD ROXO, EM 20 DE AGOSTO”, anunciava a primeira página do jornal Foco Regional, o que mais instigou a curiosidade dos leitores, foi que o jovem havia sido marcado com uma cruz no centro do peito e uma pequena passagem da Bíblia logo abaixo: “TODOS SOMOS TENTADOS POR DESEJOS DE COISAS QUE DEUS PROIBIU. (TIAGO 1:14-15)”, a reportagem trazia também que a vítima era homossexual, tal crime assustou e perturbou a população de modo geral.


- Ora, mas aonde vais com tanta pressa, seu Eduardo? – disse a vizinha abelhuda, com seus grandes olhos escuros fixos na mala que o homem carregava embaixo dos braços.
- Mas que cousa Marlene, vou sair, velha intrometida! – disse esbaforido, sentindo o sangue ferver nas veias, saiu apressadamente do local. Partiria para o litoral, precisava tratar de negócios.
- Esse velho deve “tá” aprontando. – bufou a velha, quando Eduardo já estava distante.


Um mês se passou desde o último ultraje, e o jornal anunciava “COM 24 ANOS, HOMOSSEXUAL É MORTO NO LITORAL FLUMINENSE”, mais uma vez possuía uma cruz marcada em seu peito, com a seguinte frase: “TODAS AS OUTRAS RELAÇÕES SEXUAIS SEJAM HOMOSSEXUAIS OU HETEROSSEXUAIS SÃO SEMPRE E ABSOLUTAMENTE PROIBIDAS (HEBREUS 13:4).”.
A polícia percebendo que não se tratava de um simples assassino, mas em série, buscou investigar melhor o caso. As testemunhas afirmaram não ter visto nada de anormal, apenas horas antes um vendedor de Bíblias, passando de casa em casa.


Davi seguia com sua vocação religiosa, e era muito prestigiado após suas celebrações, o povo o adorava. Seu pai agora se casara de novo e dera-lhe uma irmãzinha, que já completava cinco anos. Tudo corria muito bem para Davi e sua família, seu pai comentava com curiosos, que Deus o salvara de uma vida medíocre e miserável.


- Bom dia, minha senhora, gostaria de comprar uma Bíblia? – disse amavelmente.
- Não quero, agora saia! – disse asperamente, liberando uma nuvem negra de fumaça pelos lábios, enquanto outra pequena mulher de cabelos encaracolados se junta a ela.
- Quem é este, Milena? – disse enrugando a testa.
- Não é ninguém, venha. – disse tascando-lhe um beijo e a puxando para dentro.
- D-desculpe atrapalhá-las, senhoritas, tenham um bom dia. – disse o velho, com um sorriso amarelo.


20 de outubro.
            - Olhe cá Amélia, mais um assassinato. – dizia Marlene à filha.
            - Leia para mim mamãe, quem foi desta vez?
            - Duas mulheres, Cássia e Milena, namoradas, a frase desta vez foi: “POR CAUSA DISSO, OS ENTREGOU DEUS A PAIXÕES INFAMES; PORQUE ATÉ AS MULHERES MUDARAM O MODO NATURAL DE SUAS RELAÇÕES ÍNTIMAS POR OUTRO, CONTRÁRIO À NATUREZA. (ROMANOS 1:26-27).”. Que Deus as tenha, pobres meninas.


- Capitão, ainda nenhuma pista significativa, o que faremos?
- Precisamos de mais pistas, o que há de comum entre os crimes? Antes eu pensava que talvez fosse um serial killer de homens homossexuais, mas este me surpreende, nosso homem é mais complexo do que me parecia.
- O que temos senhor: ele mata apenas homossexuais e todos possuem a mesma cruz, talvez devêssemos investigar sua procedência. O que achas?
- Tudo bem, cuide disso.


- Querido pároco Marcelo, venho pedir-lhe uma semana para minha família e eu, seria possível?
- Mas é claro Davi, acho mesmo que precisa de um descanso depois de tanto esforço e comprometimento para conosco, concedo-lhe esta semana, divirta-se.
- Obrigado, mas só sirvo as vontades de meu Deus. Parto dia dezoito de novembro. Até mais.
Davi leva toda a família para Copacabana. Uma semana usufruindo do sol escaldante diante de uma praia exuberante, num hotel luxuoso, com uma varanda voltada para as ondas do mar, que visão!
Convidado pelo pároco da igreja Nossa Senhora de Copacabana e Santa Rosa de Lima, presidiu a missa do domingo, às 8h e 30min. Foi uma honra, dizia ele ao pároco. Davi parecia jubiloso e ao mesmo tempo preocupado e nervoso, algum sentimento o tomava e o tirara dali por alguns instantes, seu pai teve de chamar sua atenção duas vezes por estar tão disperso. Sentia-se estranho, seu estômago remexia, sentido que algo ruim haveria de acontecer e não demoraria. Passaram-se alguns minutos em que buscara em sua mente o que lhe preocupara tanto, então, sabia, era dia vinte de novembro.


21 de novembro, era segunda feira, correu ver o noticiário da manhã. Estalou os olhos.
“- Sim, Sandra, mais de 200 pessoas morreram ontem à noite na boate GLS Le Boy, em Copacabana. A perícia diz que a causa foi a inalação contínua de acetileno, as câmeras revelam que quando as primeiras pessoas começaram a sentir os sintomas, as demais tentaram escapar, mas as portas estavam trancadas por fora. Ninguém imagina como isso ocorreu, os moradores afirmam não ter visto nada anormal. Na fachada como você pode observar, há uma frase bíblica: "NÃO VOS ENGANEIS: NEM IMPUROS, NEM IDÓLATRAS, NEM ADÚLTEROS, NEM EFEMINADOS, NEM SODOMITAS . . . HERDARÃO O REINO DE DEUS" (1 CORÍNTIOS 6:9-10).”.A polícia acredita que o crime tenha relação com os outros três ocorrido na Baixada Fluminense.. – não queria terminar de assistir, deitou-se na cama pensativo, o que faria agora?


20 de novembro, 22h e 30min.
            Não, ele não poderia continuar com isso, são pessoas inocentes, e, bem, utilizar a Igreja e o nome do próprio Deus, para poder se livrar de um fardo, que era somente seu, ele deveria ser preso. Sua consciência já não suportara mais tudo isso. Andava de um lado para o outro, suspirando dolorosamente, sua mente estava um reboliço. Mas, afinal, o que ele poderia fazer, condenado a uma vida miserável, perdera tudo.
            Parou, ouviu atentamente: sirenes se aproximando, sabia, havia sido descoberto. Quando pensou em sair dali, se esconder, já era tarde, o pegaram.


Alguém bate a porta.
- Entre.          
- Desculpe-me capitão, mas o homem que pediu já está esperando.
- Tudo bem, vou vê-lo – disse levando-se abruptamente e à passadas largas alcançou a pequena sala branca, que continha apenas uma luz incandescente ao centro, deixando o clima mais tenso, sentou agilmente na cadeira, cruzou os dedos em cima da mesa e disse calmamente ao homem que jazia do outro lado:
- Senhor Eduardo Barnard, certo?
- S-sim s-senhor. – estremeceu o velho.
- Sabes o senhor o porquê de estar aqui, não é?
- Não senhor. – vagarosamente abaixou os olhos, como um cão culpado.
- Ora Sr. Barnard, não sejas tímido, conte-me tudo e eu o ajudarei. – disse o capitão, com um sorriso dissimulado.
- D-desculpe-me, senhor, mas não sei do que falas.
- Peço-lhe que não me tires a paciência.
- Tudo bem, eu conto. Estava vendendo aquelas Bíblias mais caras, e senh... – ele não terminara a frase e fora interrompido:
- Basta! Tu mataste mais de 200 pessoas e mostra-te ingênuo? Mas que sacanagem! – disse o homem, que agora parecia ainda maior, socando com força os punhos fechados sobre a frágil mesa. O velho põe-se a chorar freneticamente, cobrindo o rosto com suas mãos calejadas.
- Tu estiveste vendendo suas Bíblias em todos os lugares em que houve os assassinatos, mera coincidência? Eu digo que não, meu caro. Sua vizinha disse-nos que tu vivias às pressas e nunca dizia aonde ias, tinha crises horripilantes com Deus, em tua casa encontramos a máquina de escrever, que por acaso tinhas as mesmas letras garrafais dos papéis pregados com taxinhas nos corpos das vítimas. Por fim, em umas das vítimas encontramos tuas digitais, o que mais queres? – o homem não respondera, apenas soluçava, não detinha o conhecimento da persuasão, permaneceu calado, rezando. – Prendam-no! – vociferou, com o olhar coberto de ódio, o filho do capitão morreu naquele dia 20 de novembro na boate Le Boy.
O que ninguém sabia era que Eduardo também havia perdido seu filho no meio desses assassinatos, Frederico era seu nome, um menino gentil, que expirava alegria, fora a segunda vítima, ia encontrar um amigo no Litoral, após passar a tarde com o pai, que estava a trabalho lá, vendendo suas Bíblias, mas é claro que encontraram suas digitais, Eduardo só não sabia como se proteger, era um pobre miserável.
 – Só não compreendo, contudo, as frases bíblicas e o dia vinte em todos os assassinatos, mas afinal não se pode entender a mente de um louco. – resmungou o capitão, assim que levaram o homem.


- Senhores e senhoras do júri, eu o declaro culpado. Cumprirás prisão perpétua. – disse por fim, o juiz, acreditando, imaculadamente, que fazia a coisa certa.
Lá no fundo da assembleia, encontrava-se Davi, disfarçado, ouvindo firmemente a tudo e todos, nenhuma acusação ou uma tênue linha de pensamento deveria virar o jogo para si, o grande culpado. Ele planejara tudo assiduamente, foram-se anos de organização, nada, absolutamente nada deveria dar errado. Os primeiros crimes foram fáceis, sua primeira vítima foi estrangulada e marcada com a cruz da salvação, haveria de ser salvo no céu, pensara o padre. O mais difícil mesmo foi matar todas aquelas pessoas de uma vez só, exigiu muito dele, porém, um mágico nunca revela seus segredos, ele ainda não acreditava que o velho fora descoberto com tanta facilidade, “droga, não devia ter matado seu filho nojento!”, pensou arrependido, mas o que importava é que ainda estava a salvo e cumprira o mandato que Deus lhe designava: livrar o mundo de toda a perversidade. Entendia que não livraria todo o mundo, mas pelo menos livrara o mundo daqueles que matara, agora eram menos 280 pecadores no mundo. Ia parar por aí, ou não, talvez um dia, ainda se vingasse daquele que lhe tirou sua dignidade, em vinte de abril de 1995.

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