Culpado!
– determinou o juiz diante do tribunal em 1994, quando tinha apenas dezesseis
anos. Fora preso por ser “entregador” de drogas, trabalhava para um grande
traficante de uma das favelas do Rio de Janeiro. Morava com o pai, na Baixada
Fluminense, a mãe havia morrido no parto. Vivia teoricamente bem, o pai era
médico cirurgião, vivia a maior parte do tempo no hospital, sendo talvez esse o
motivo pelo qual Davi entrara para o tráfico, era um garoto presunçoso, mas ao
mesmo tempo carente.
Passou
dois anos no reformatório, onde fora estuprado por um dos guardas. Isso tornou Davi
reprimido. Ao ser libertado, o psicólogo do reformatório indicou ao pai que
fosse levado ao psiquiatra duas vezes ao mês. “Como se fosse mudar algo”,
pensava ele. Foram seis meses de terapia.
Foi em
1997 que ele entrou para a faculdade, estudou teologia. Após graduar-se passou
a morar sozinho em uma pequena casa cedida pela paróquia, que trabalhava na
periferia da Baixada.
- Bom
dia, Sr. Barnard, que bom que chegou!
-
Hã...pode me chamar de Eduardo, padre. - Eduardo era um homem que um dia fora
muito rico, mas seu vício em bebidas o levou à ruínas, perdendo a mulher e o
filho. Passando a morar numa pequena casa, na periferia, pagando aluguel, que
de fato estava sempre atrasado, por ameaças do dono, decidiu pedir ajuda ao
padre Davi.
- Tudo
bem. Aqui estão as Bíblias de que lhe falei e os panfletos. – disse
entregando-lhe uma caixa pesada, que fazia parecer que os frágeis braços do
velho não aguentariam – Mas antes, – disse hesitante – sabes tu que faço isso,
porque me pedistes, não é mesmo?
- Não
se preocupe padre Davi, meus lábios estão selados.
- Muito
bem – disse sorrindo e entregando-lhe a caixa pesada.
“JOVEM
É ASSASSINADO EM BELFORD ROXO, EM 20 DE AGOSTO”, anunciava a primeira página do
jornal Foco Regional, o que mais instigou a curiosidade dos leitores, foi que o
jovem havia sido marcado com uma cruz no centro do peito e uma pequena passagem
da Bíblia logo abaixo: “TODOS SOMOS
TENTADOS POR DESEJOS DE COISAS QUE DEUS PROIBIU. (TIAGO 1:14-15)”, a
reportagem trazia também que a vítima era homossexual, tal crime assustou e
perturbou a população de modo geral.
- Ora,
mas aonde vais com tanta pressa, seu Eduardo? – disse a vizinha abelhuda, com
seus grandes olhos escuros fixos na mala que o homem carregava embaixo dos
braços.
- Mas
que cousa Marlene, vou sair, velha intrometida! – disse esbaforido, sentindo o
sangue ferver nas veias, saiu apressadamente do local. Partiria para o litoral,
precisava tratar de negócios.
- Esse
velho deve “tá” aprontando. – bufou a velha, quando Eduardo já estava distante.
Um mês
se passou desde o último ultraje, e o jornal anunciava “COM 24 ANOS, HOMOSSEXUAL É MORTO NO LITORAL FLUMINENSE”, mais uma
vez possuía uma cruz marcada em seu peito, com a seguinte frase: “TODAS AS OUTRAS RELAÇÕES SEXUAIS SEJAM
HOMOSSEXUAIS OU HETEROSSEXUAIS SÃO SEMPRE E ABSOLUTAMENTE PROIBIDAS (HEBREUS
13:4).”.
A
polícia percebendo que não se tratava de um simples assassino, mas em série,
buscou investigar melhor o caso. As testemunhas afirmaram não ter visto nada de
anormal, apenas horas antes um vendedor de Bíblias, passando de casa em casa.
Davi
seguia com sua vocação religiosa, e era muito prestigiado após suas
celebrações, o povo o adorava. Seu pai agora se casara de novo e dera-lhe uma
irmãzinha, que já completava cinco anos. Tudo corria muito bem para Davi e sua
família, seu pai comentava com curiosos, que Deus o salvara de uma vida
medíocre e miserável.
- Bom
dia, minha senhora, gostaria de comprar uma Bíblia? – disse amavelmente.
- Não
quero, agora saia! – disse asperamente, liberando uma nuvem negra de fumaça
pelos lábios, enquanto outra pequena mulher de cabelos encaracolados se junta a
ela.
- Quem
é este, Milena? – disse enrugando a testa.
- Não é
ninguém, venha. – disse tascando-lhe um beijo e a puxando para dentro.
- D-desculpe
atrapalhá-las, senhoritas, tenham um bom dia. – disse o velho, com um sorriso
amarelo.
20 de outubro.
- Olhe cá Amélia, mais um
assassinato. – dizia Marlene à filha.
- Leia para mim mamãe, quem foi
desta vez?
- Duas mulheres, Cássia e Milena,
namoradas, a frase desta vez foi: “POR CAUSA DISSO,
OS ENTREGOU DEUS A PAIXÕES INFAMES; PORQUE ATÉ AS MULHERES MUDARAM O MODO
NATURAL DE SUAS RELAÇÕES ÍNTIMAS POR OUTRO, CONTRÁRIO À NATUREZA. (ROMANOS
1:26-27).”. Que Deus as tenha, pobres meninas.
-
Capitão, ainda nenhuma pista significativa, o que faremos?
-
Precisamos de mais pistas, o que há de comum entre os crimes? Antes eu pensava
que talvez fosse um serial killer de
homens homossexuais, mas este me surpreende, nosso homem é mais complexo do que
me parecia.
- O que
temos senhor: ele mata apenas homossexuais e todos possuem a mesma cruz, talvez
devêssemos investigar sua procedência. O que achas?
- Tudo
bem, cuide disso.
- Querido
pároco Marcelo, venho pedir-lhe uma semana para minha família e eu, seria
possível?
- Mas é
claro Davi, acho mesmo que precisa de um descanso depois de tanto esforço e
comprometimento para conosco, concedo-lhe esta semana, divirta-se.
-
Obrigado, mas só sirvo as vontades de meu Deus. Parto dia dezoito de novembro.
Até mais.
Davi
leva toda a família para Copacabana. Uma semana usufruindo do sol escaldante
diante de uma praia exuberante, num hotel luxuoso, com uma varanda voltada para
as ondas do mar, que visão!
Convidado
pelo pároco da igreja Nossa Senhora de Copacabana e Santa Rosa de Lima,
presidiu a missa do domingo, às 8h e 30min. Foi uma honra, dizia ele ao pároco.
Davi parecia jubiloso e ao mesmo tempo preocupado e nervoso, algum sentimento o
tomava e o tirara dali por alguns instantes, seu pai teve de chamar sua atenção
duas vezes por estar tão disperso. Sentia-se estranho, seu estômago remexia,
sentido que algo ruim haveria de acontecer e não demoraria. Passaram-se alguns
minutos em que buscara em sua mente o que lhe preocupara tanto, então, sabia,
era dia vinte de novembro.
21 de novembro, era
segunda feira, correu ver o noticiário da manhã. Estalou os olhos.
“- Sim, Sandra, mais de 200 pessoas
morreram ontem à noite na boate GLS Le Boy, em Copacabana. A perícia diz que a
causa foi a inalação contínua de acetileno, as câmeras revelam que quando as
primeiras pessoas começaram a sentir os sintomas, as demais tentaram escapar,
mas as portas estavam trancadas por fora. Ninguém imagina como isso ocorreu, os
moradores afirmam não ter visto nada anormal. Na fachada como você pode
observar, há uma frase bíblica: "NÃO VOS ENGANEIS: NEM IMPUROS, NEM
IDÓLATRAS, NEM ADÚLTEROS, NEM EFEMINADOS, NEM SODOMITAS . . . HERDARÃO O REINO
DE DEUS" (1 CORÍNTIOS 6:9-10).”.A polícia acredita que o crime tenha
relação com os outros três ocorrido na Baixada Fluminense.. – não queria
terminar de assistir, deitou-se na cama pensativo, o que faria agora?
20 de novembro, 22h
e 30min.
Não, ele não poderia continuar com
isso, são pessoas inocentes, e, bem, utilizar a Igreja e o nome do próprio
Deus, para poder se livrar de um fardo, que era somente seu, ele deveria ser
preso. Sua consciência já não suportara mais tudo isso. Andava de um lado para
o outro, suspirando dolorosamente, sua mente estava um reboliço. Mas, afinal, o
que ele poderia fazer, condenado a uma vida miserável, perdera tudo.
Parou, ouviu atentamente: sirenes se
aproximando, sabia, havia sido descoberto. Quando pensou em sair dali, se
esconder, já era tarde, o pegaram.
Alguém
bate a porta.
-
Entre.
-
Desculpe-me capitão, mas o homem que pediu já está esperando.
- Tudo
bem, vou vê-lo – disse levando-se abruptamente e à passadas largas alcançou a
pequena sala branca, que continha apenas uma luz incandescente ao centro,
deixando o clima mais tenso, sentou agilmente na cadeira, cruzou os dedos em
cima da mesa e disse calmamente ao homem que jazia do outro lado:
-
Senhor Eduardo Barnard, certo?
- S-sim
s-senhor. – estremeceu o velho.
- Sabes
o senhor o porquê de estar aqui, não é?
- Não
senhor. – vagarosamente abaixou os olhos, como um cão culpado.
- Ora
Sr. Barnard, não sejas tímido, conte-me tudo e eu o ajudarei. – disse o capitão,
com um sorriso dissimulado.
-
D-desculpe-me, senhor, mas não sei do que falas.
- Peço-lhe
que não me tires a paciência.
- Tudo
bem, eu conto. Estava vendendo aquelas Bíblias mais caras, e senh... – ele não
terminara a frase e fora interrompido:
-
Basta! Tu mataste mais de 200 pessoas e mostra-te ingênuo? Mas que sacanagem! –
disse o homem, que agora parecia ainda maior, socando com força os punhos
fechados sobre a frágil mesa. O velho põe-se a chorar freneticamente, cobrindo
o rosto com suas mãos calejadas.
- Tu
estiveste vendendo suas Bíblias em todos os lugares em que houve os assassinatos,
mera coincidência? Eu digo que não, meu caro. Sua vizinha disse-nos que tu vivias
às pressas e nunca dizia aonde ias, tinha crises horripilantes com Deus, em tua
casa encontramos a máquina de escrever, que por acaso tinhas as mesmas letras
garrafais dos papéis pregados com taxinhas nos corpos das vítimas. Por fim, em
umas das vítimas encontramos tuas digitais, o que mais queres? – o homem não
respondera, apenas soluçava, não detinha o conhecimento da persuasão,
permaneceu calado, rezando. – Prendam-no! – vociferou, com o olhar coberto de
ódio, o filho do capitão morreu naquele dia 20 de novembro na boate Le Boy.
O que
ninguém sabia era que Eduardo também havia perdido seu filho no meio desses
assassinatos, Frederico era seu nome, um menino gentil, que expirava alegria,
fora a segunda vítima, ia encontrar um amigo no Litoral, após passar a tarde
com o pai, que estava a trabalho lá, vendendo suas Bíblias, mas é claro que
encontraram suas digitais, Eduardo só não sabia como se proteger, era um pobre
miserável.
– Só não compreendo, contudo, as frases bíblicas
e o dia vinte em todos os assassinatos, mas afinal não se pode entender a mente
de um louco. – resmungou o capitão, assim que levaram o homem.
-
Senhores e senhoras do júri, eu o declaro culpado. Cumprirás prisão perpétua. –
disse por fim, o juiz, acreditando, imaculadamente, que fazia a coisa certa.
Lá no
fundo da assembleia, encontrava-se Davi, disfarçado, ouvindo firmemente a tudo
e todos, nenhuma acusação ou uma tênue linha de pensamento deveria virar o jogo
para si, o grande culpado. Ele planejara tudo assiduamente, foram-se anos de
organização, nada, absolutamente nada deveria dar errado. Os primeiros crimes
foram fáceis, sua primeira vítima foi estrangulada e marcada com a cruz da
salvação, haveria de ser salvo no céu, pensara o padre. O mais difícil mesmo
foi matar todas aquelas pessoas de uma vez só, exigiu muito dele, porém, um
mágico nunca revela seus segredos, ele ainda não acreditava que o velho fora
descoberto com tanta facilidade, “droga,
não devia ter matado seu filho nojento!”, pensou arrependido, mas o que
importava é que ainda estava a salvo e cumprira o mandato que Deus lhe
designava: livrar o mundo de toda a perversidade. Entendia que não livraria
todo o mundo, mas pelo menos livrara o mundo daqueles que matara, agora eram
menos 280 pecadores no mundo. Ia parar por aí, ou não, talvez um dia, ainda se vingasse
daquele que lhe tirou sua dignidade, em vinte de abril de 1995.